segunda-feira, 18 de abril de 2016

“Impunidade no campo é mais enraizada que qualquer outra", diz Eric Nepomuceno (Fonte: Brasil de Fato)

"O Massacre – Eldorado dos Carajás: Uma História de Impunidade, lançado em 2007, se tornou a obra escrita de referência em relação ao episódio. Eric Nepomuceno, autor do livro, apresenta o contexto agrário da região, reconstrói os acontecimentos do dia 17 de abril e relata como se deu o julgamento dos envolvidos na morte de 21 sem-terra assassinados durante uma ação da Polícia Militar (PM) para liberar o trecho conhecido como Curva do S, na rodovia PA-275, no sul do Pará, ocupado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
No momento em que se lembram os 20 anos do ocorrido, Nepomuceno prepara uma nova edição do livro. Em entrevista ao Brasil de Fato, o jornalista afirma que os dados atualizados sobre violência no campo apontam para o fato de que a impunidade ainda se faz presente. Apesar das condenações dos policiais que coordenaram a operação que resultou no massacre, o jornalista afirma que os comandantes – políticos e latifundiários – “continuam lá”.
Para ele, a impunidade caminha junto do esquecimento. “Eles [sem-terra] morreram, e deles ficou essa ferida que continua aberta no meu país, no tecido social brasileiro. Deveria continuar aberta na consciência de todos brasileiros, coisa que, eu acho, não acontece”, lamenta o escritor. “São mártires esquecidos, injustiçados”, apontou.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato – Como foi o processo de produção do livro que conta a história do Massacre de Eldorado dos Carajás?
Eric Nepomuceno – Encontrei um amigo advogado criminalista, Nilo Batista, que estava atuando como assistente da acusação no caso. Ele deu a ideia de escrever sobre o processo judicial. Isso ocorreu no começo dos anos 2000.
Demorou mais de três anos, do começo de 2004 até o início de junho de 2007, quanto entreguei o livro [para a editora]. Eu entrevistei 32 pessoas, algumas delas várias vezes. Fiz entrevistas em São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro; Belém, Marabá, Parauapebas e Eldorado dos Carajás [no Pará]. Foram 54 horas de gravação, além de um monte de cadernetas de anotações.
Fui a Eldorado [dos Carajás], mas não fiquei muitos dias, quatro ou cinco, até por questões de segurança. [Ainda] estava muito tenso. Era difícil falar com as pessoas, sobretudo, em Belém. As pessoas que eram próximas do governador Almir Gabriel [PSDB] tinham um certo receio, porque ninguém havia sido julgado, ninguém havia sido preso. Falar era muito complicado.
O título do seu livro faz menção à questão da impunidade. Na sua avaliação, ela continua existindo?
Sob muitos aspectos, sim. Estão presos o coronel Mário Pantoja e o major Oliveira, mas nunca houve investigação a fundo sobre os mandantes. Esses continuam lá. Uns morreram de morte natural, mas eu não acredito que o quadro em si não tenha tido grandes mudanças, não.
Se você observar com calma o quadro da terra no Brasil, não acredito em mudanças substanciais. A reforma agrária continua uma bandeira em um horizonte distante. Quando a gente fala em impunidade no Brasil, pensa-se muito na impunidade no momento. Agora estamos falando de corruptores e corruptos no meio político. A impunidade na questão do campo, essa ninguém fala, e ela é muito mais antiga e enraizada que qualquer impunidade.

Em relação às condenações, na sua avaliação, elas reforçam a ideia de que foi “apenas” uma atitude excepcional de dois policiais?
Não foi a iniciativa de dois policiais tresloucados e suas tropas. É óbvio que não. É absolutamente comprovado que, no Pará, como em muitas outras regiões do Brasil, as forças de segurança pública agem como forças de segurança privada: respondem aos interesses dos latifundiários, dos grileiros, dos donos da terra. Eu não tenho a mais remota dúvida.
Foram punidos os dois comandantes da operação, mas não se chegou sequer perto dos mandantes. Há um abismo aí. Por exemplo, um dado que me chamou muitíssima atenção na época, os ônibus que levaram as tropas foram pagos em dinheiros pela Companhia Vale do Rio Doce, que na época ainda era uma empresa estatal. Não foi a PM [Polícia Militar] que usou a sua caixa de recursos para transportar as tropas até o local do massacre, foi a Vale. Isso deveria ter sido apurado.
A minha percepção é que a polícia cumpre ordens. No lugar de cumprir ordens do Estado, elas atuam a serviço dos interesses, sobretudo, econômicos. São famílias que são donas de extensões continentais de terra, muitas vezes obtidas de maneira ilegal. Na hora de proteger e defender esses interesses se recorre às forças policiais.
Na sua avaliação, qual é o significado do Massacre de Eldorado dos Carajás para a história do país?
[O Massacre de] Eldorado dos Carajás ficou como um marco. Fala-se em 19, mas dois morreram depois em decorrência dos ferimentos. Tanto é assim que 17 de Abril é o Dia Mundial da Luta pela Terra. Um fato como este não se repetiu [de uma só vez] em número, mas os massacres continuam até hoje. Matam um aqui, dois ali, passa um tempo, matam mais três. Enquanto não for feita uma reforma agrária nesse país, uma demanda de 500 anos de história, isso vai continuar. Sempre vai haver gente reclamando terra para viver e trabalhar e sempre vão haver os donos ilegais da terra, que vão usar de todos os meios, legais e ilegais, para defender os seus interesses.
Como você se sentiu ao visitar Eldorado dos Carajás?
Eu senti um misto de esperança e desesperança. Quem ficou na terra, ficou com uma esperança, com um horizonte. Ao mesmo tempo, com uma lacuna, porque eles sabiam que estavam lá à custa de 21 mortos. Eram companheiros deles. Houve muito abandono também, uma coisa é você dar a terra e sumir, outra coisa é dar terra e fornecer apoio, porque essas pessoas chegaram lá sem nada, com uma esperança de vida e só. Não tiveram o apoio necessário, não havia infraestrutura, em uma região inóspita, cercada de pressões o tempo inteiro.
No começo, quando os moradores da Vila 17 de Abril iam a Eldorado dos Carajás, eles eram hostilizados. Estou falando de oito anos depois. Ainda era você entrar em um território duvidoso. Eu, que tenho certa experiência como repórter de campo, voltava para o hotel e ficava pensando: “O que fizeram com esse país?”.
Para você, qual o legado do Massacre de Eldorado dos Carajás?..."
São dois legados. Um, direto: a terra conquistada, com justiça, pelos sobreviventes. O segundo é o exemplo, o grito de denúncia. Eles morreram e ficou essa ferida que continua aberta no país, no tecido social brasileiro. Deveria continuar aberta na consciência de todos brasileiros, coisa que, eu acho, não acontece.
Este é um país onde os meios de comunicação não comunicam e onde os formadores de opinião são deformadores. O Brasil tem uma opinião pública anestesiada, envenenada e que não tem plena consciência da nossa tragédia: a tragédia da injustiça social. Um dos componentes básicos dessa tragédia é a inexistência de uma reforma agrária..."
Íntegra: Brasil de Fato

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